O Salvador respondeu-nos a algumas perguntas relativas à nova campanha “Confinados até quando?”, onde explicou a importância desta iniciativa em Portugal e para a Associação Salvador. Esta é uma campanha que pretende mostrar ao país que a falta de acessibilidades e isolamento em pleno século XXI é real, e de como é urgente relembrar as entidades competentes sobre esta problemática.
Leia a entrevista completa aqui:
A Associação Salvador vai lançar uma campanha nacional de sensibilização intitulada “Confinados até quando?”. Que objetivos pretendem atingir? Qual é a mensagem que querem passar?
A campanha “Confinado até quando?” pretende mostrar ao país que a situação da falta de acessibilidades e isolamento, em pleno século XXI, é real. É urgente relembrar as entidades competentes sobre o seu papel neste processo: o Governo, o Instituto Nacional para a Reabilitação, as Câmaras Municipais, os responsáveis pelos estabelecimentos, assim como a sociedade em geral. Não podemos viver mais 20 anos confinados.
Não chega dizermos que os espaços não são acessíveis, temos de mostrar quem são os responsáveis pela falta de acessibilidades e pela fiscalização e exigir uma mudança célere. As Câmaras Municipais, neste ano de Eleições Autárquicas, devem contemplar este assunto como uma prioridade.
É também urgente uma revisão do Decreto-Lei 163/2006,
Acredita que o facto de a população em geral ter estado confinada durante estes meses vai fazer com que as pessoas fiquem ainda mais solidárias com esta campanha que chama a atenção para o contínuo isolamento das pessoas com mobilidade reduzida?
Sem dúvida. Estamos todos fechados há muito tempo e com uma enorme vontade de sair e conviver. Consideramos que a campanha vai alertar a população para a importância de resolver a situação da falta de acessibilidades, que conduz a uma enorme exclusão social, fazendo com que as pessoas com deficiência motora vivam um confinamento permanente que lhes é imposto pela sociedade.
Desafio-vos a descobrirem uma rua em Portugal que não tenha nenhum obstáculo de acessibilidades. Passadeiras não rebaixadas, buracos na calçada, degraus à entrada de lojas, falta de estacionamento reservado, etc.
Todos podemos ter um papel ativo na sociedade e contribuir para a mudança, vamos todos ser voluntários nesta causa. Classifiquem na app “+ Acesso Para Todos”, escrevam-nos, ajudem-nos a mapear as cidades, para mostrarmos à sociedade e principalmente às Autarquias que a postura e a preocupação com esta temática tem de mudar. Olhem com outros olhos para o local onde vão todos os dias buscar o pão, onde vão jantar, onde vão às Finanças, onde atravessam a passadeira… São realmente acessíveis? Falem com os responsáveis, sensibilizem para a mudança.
Pode-se falar em desigualdade?
Quando falamos da falta de acessibilidade, falamos obviamente em desigualdade. Desde a habitação, transportes, via pública, serviços do Estado e espaços privados, os próprios postos de trabalho.
Precisamos de igualdade de oportunidades e de cidades mais preparadas podermos viver com autonomia.
Dou-vos um exemplo fácil, é estranho pensar que vou a Vila Franca de Xira e olho em redor e nota-se o porquê de existirem faixas acessíveis, acessibilidade na maioria dos Serviços do Estado, passadeiras rebaixadas. Porquê? Será pelo facto de existir uma Vereadora com deficiência, que tem feito um trabalho incansável nesta área? Precisamos de mais bons exemplos e não apenas uma minoria. Se não, a desiguadade continua.
Será que as empresas pensam na acessibilidade como um todo? Desde a acessibilidade para o cliente mas também para os seus próprios colaboradores?
Sabemos que não é possível tornar tudo acessível de hoje para amanhã. Mas também sabemos que continuamos a ter Câmaras Municipais sem planos de acessibilidade ou com planos na gaveta, continuamos assistir a novas obras públicas e privadas sem acessibilidade, continuamos a não ter fiscalização, continuamos a ter inúmeras barreiras físicas quando tentamos integrar uma pessoa com deficiência no mercado de trabalho.
Quais são os maiores obstáculos e dificuldades para as pessoas com mobilidade reduzida?
Passadeiras não rebaixadas, ou mal rebaixadas, falta de faixas acessíveis (que podem viver com a calçada portuguesa e permitem que as pessoas com deficiência consigam circular com autonomia), falta de acessibilidades a edifícios públicos e privados, casas de banho adaptadas a servirem de salas de arrumos, calçada portuguesa sem manutenção. Mas também existe muita falta de sensibilidade das pessoas em geral, porque não sentem o problema na pele. Entre muitos outros.
É necessária uma mudança já! Estas dificuldades têm de diminuir drasticamente.
Para isso, é essencial uma revisão ao Decreto-Lei das acessibilidades, pois tem várias lacunas e inúmeras exceções (nas quais se enquadram a maioria dos espaços), mas também que as normas e diretrizes se tornem mais claras para todos. É também essencial que exista fiscalização e técnicos sensibilizados e competentes para atuarem nesta área.
Dou-vos um exemplo simples: para mim, uma passadeira não rebaixada ou um degrau à entrada de um estabelecimento faz com que seja impossível transpor esse obstáculo. A minha cadeira de rodas pesa mais de 200kg e “nem com uma ajudinha” consigo.
Obviamente todas as pessoas com deficiência ambicionam uma vida autónoma e para isso a acessibilidade tem de existir. Caso contrário tenho sempre de depender de alguém porque não sei que obstáculos vou encontrar. Desafio-vos a sentarem-se numa cadeira de rodas para perceberem a dificuldade.
Os obstáculos são mais que muitos. O que sentimos é que tudo tem de ser pensado para todos, dentro das possibilidades que existem e dentro do investimento financeiro que é possível fazer, obviamente. Mas que exista este esforço de todas as partes, de todas as entidades e da sociedade em geral.
Tem acesso a números concretos que traduzam essas dificuldades em termos de mobilidade e acessibilidade em Portugal?
Foi lançado um inquérito em Outubro de 2020, para todos os Munícipios. Os principais resultados foram os seguintes:
- 70% nunca planearam as condições de acessibilidade (não fizeram o PLANO no âmbito do Projeto RAMPA – Regime de Apoio aos Municípios para as Acessibilidades ou os Planos de Promoção das Condições de Acessibilidade, projetos cofinanciados pelo Estado Português, entre 2009-2013, nem outro plano similar):
- 95% dos inquiridos refere ter acesso ao Guia das acessibilidades de mobilidade para todos lançado em 2006 pelo Governo;
- Dos que desenvolveram um plano, 60% não deram continuidade a esse trabalho desenvolvido há 10 anos e 88,5% não fez qualquer atualização no decorrer destes 10 anos;
- Dos Municípios que trabalharam os Planos de acessibilidade, só 13% afetaram 0,5% do seu orçamento municipal para as acessibilidades. Ou seja, quase zero;
- 80% das autarquias não têm nenhuma estrutura dedicada a esta matéria e não têm técnicos afetos às acessibilidades, o que revela que não o assumem como uma prioridade;
- Outro dado grave que este inquérito informou, foi sabermos que, não obstante o Decreto-Lei 163/2006 de 8 de agosto exigir às Autarquias o envio anual ao Instituto Nacional para a Reabilitação – INR, de Relatórios com o estado da arte, 80% indicaram que nunca os enviaram;
- No que diz respeito às boas práticas, 80% dos Municípios refere que não tem um único equipamento ou espaço público 100% acessível, nem certificado;
- Quanto à fiscalização, as autarquias não a fazem, apenas validam os projetos quando são submetidos na gestão urbanística, que efetivamente também não tem técnicos formados para o efeito e sensíveis ao tema;
- 70% das autarquias também sublinham que os seus técnicos não fazem formação nesta área;
- As principais razões apontadas para o incumprimento do Decreto-Lei 163/2006 são a ausência de conhecimentos técnicos (35%) e falta de fiscalização (55%), entre outras;
- O inquérito foi respondido por 1/3 dos Municípios, aproximadamente.
O que é que deve ser melhorado? O que é mais urgente alterar ao nível das acessibilidades? Quem devem ser os agentes de mudança?
Enquanto não existir uma revisão do Decreto-Lei 163/2006, enquanto a fiscalização não atuar, enquanto não existir sensibilidade por parte dos proprietários para tornar os seus espaços acessíveis, viveremos esta realidade. O Governo e as Câmaras são os principais responsáveis e, por isso, as principais entidades que poderão fazer a diferença
Estamos numa altura, em que os futuros Presidentes de Câmaras podem e devem repensar esta área das acessibilidades e torná-la uma prioridade.
Foi neste sentido que decidimos lançar esta carta ao país, para voltar a relembrar à sociedade que estas são situações com que as pessoas com deficiência motora se deparam diariamente. “Confinados até quando?” chama a atenção para um problema que, infelizmente, apenas quem passa por ele está mais sensibilizado. Queremos que comecem a existir mudanças efetivas significativas nesta área. Não podemos continuar permanentemente à espera.
A campanha foi desenvolvida pela CARMEN, agência criativa do YoungNetwork Group, mas foi impulsionada pela Associação Salvador. Qual é o papel da associação, 18 anos depois da sua fundação?
A Associação Salvador, fundada em 2003, atua na área da deficiência motora e tem como missão promover a integração das pessoas com deficiência motora na sociedade e melhorar a sua qualidade de vida, potenciando os seus talentos e sensibilizando para a igualdade de oportunidades.
Desde a sua criação, tem vindo a desenvolver projetos diferentes e ambiciosos que tiveram excelentes resultados e um demonstrado impacto na melhoria da integração e qualidade de vida de inúmeras pessoas com deficiência, tendo apoiado ao longo de 18 anos mais de 3.860 pessoas e as suas famílias.
Na área das acessibilidades, temos vindo a trabalhar com diferentes entidades e a realizar diversas ações de sensibilização a alertar para esta temática. Ambicionamos que este assunto deixe rapidamente de ser um problema e que a nossa intervenção deixe de ser necessária. Na realidade, se existir uma lei eficaz, que seja fiscalizada, apenas será necessária uma correta atuação dos arquitetos, dos técnicos, das Câmaras Municipais, do Governo. Isto era o que deveria acontecer num país desenvolvido, em pleno século XXI.