Sobre uma mulher inteira. Inteira da sua independência, do seu valor e estatuto profissional, da sua capacidade de proteger e seduzir.
Em 2006 o tapete foge-nos dos pés, quando uma escada escorrega e provoca uma lesão medular permanente. O que era para uma engenheira agrónoma cheia de si, apanhar diospiros à beira da estrada numa tarde outono? Prazer, simples e fácil. Até esse dia. Do outro lado, em Lisboa, está uma filha de 11 anos dependente e orgulhosa da sua mãe, inteira.
Os meses passaram, e a informação foi sendo passada gota-a-gota. Só mais uma semana no hospital, não é assim tão grave. Um ano passou, em que ninguém sabia ao certo a dimensão do problema, ou das suas consequências. Grande era o choque a cada visita ao Centro de Reabilitação de Alcoitão, onde insistia o pensamento ‘a minha mãe não pertence aqui’, onde o ambiente é de desanimo e o sofrimento se sente no coração e nos ossos.
Chega finalmente o dia de voltar para casa, de aprender a viver de outra forma, de inverter papéis. Onde a mãe já não é infalível, e a filha já não pode ser dependente. Onde se enfrentam situações para as quais ninguém nos preparou, para barreiras, desespero, fraldas, esvaziamentos de bexiga e treinos intestinais. Para escaras, sondas, gemidos de dor 24h por dia. O cérebro humano e a capacidade de amar ultrapassam limites que nem sabíamos que existiam, a força para agir, quando sabemos que somos a única pessoa com capacidade física para agir. Tudo o resto bloqueia.. a dor, as questões, a falta de informação sobre a doença. Bloqueia. Interessa agir, resolver problemas, não mostrar pesar. É um processo obrigatório. Ver a pessoa que idolatramos perder a postura e a dignidade, presenciar as consequências da lesão física e a falta de capacidade psicológica de a aceitar. Assistir à perda de controlo dos esfíncteres em sítios públicos, ver o pânico e a vergonha na cara da mulher que já não é inteira.. e resolver, de forma automática e mecânica.
Contra todas as probabilidades e com um esforço sobre-humano característico da minha mãe, a sensibilidade dos membros foi voltando, o controlo dos esfíncteres também. Todos os dias dou graças por isso.
Quando passa a tempestade, o cérebro desbloqueia. Durante seis anos eu assisti, participei, agi. Sem falar.
Seis anos depois, o trauma rebenta em forma de ansiedade. É diagnosticado um distúrbio de ansiedade crónica aos 17 anos, 1 ano de prisão física e emocional. Ninguém sabe o que é ou de onde vem. Chegam e vão terapeutas, psiquiatras e neurologistas. A dor não passa, o medo e o bloqueio involuntário do corpo. Os ajustes de terapia e de medicação infindáveis.
É verdade, não acontece só aos outros. Tudo tem que ver com amor, abertura, informação e nomenclatura. Não ter medo de falar, de chamar as coisas pelos nomes, de partilhar a dor.
Oito anos depois, a minha mãe é uma mulher inteira, tanto quanto pode e de que tanto me orgulho. Eu tento todos os dias aprender a lidar cada vez melhor com a minha condição, desta vez consciente de que não, não acontece só aos outros.
Por Margarida Filipe Silva