TESTEMUNHO
Segurança Rodoviária

Margarida Filipa Silva: “Não acontece só aos outros, e agora?”

Em 2006, a mãe de Margarida teve um acidente que resultou numa lesão medular, que a deixou paraplégica. Foram anos complicados, em que se debateram com muitos tabus e falta de informação. Hoje, quis dar o seu testemunho, na primeira pessoa, para que mais ninguém (familiares e cuidadores) passem pela dor por que passou.

Sobre uma mulher inteira. Inteira da sua independência, do seu valor e estatuto profissional, da sua capacidade de proteger e seduzir.

Em 2006 o tapete foge-nos dos pés, quando uma escada escorrega e provoca uma lesão medular permanente. O que era para uma engenheira agrónoma cheia de si, apanhar diospiros à beira da estrada numa tarde outono? Prazer, simples e fácil. Até esse dia. Do outro lado, em Lisboa, está uma filha de 11 anos dependente e orgulhosa da sua mãe, inteira.

Os meses passaram, e a informação foi sendo passada gota-a-gota. Só mais uma semana no hospital, não é assim tão grave. Um ano passou, em que ninguém sabia ao certo a dimensão do problema, ou das suas consequências. Grande era o choque a cada visita ao Centro de Reabilitação de Alcoitão, onde insistia o pensamento ‘a minha mãe não pertence aqui’, onde o ambiente é de desanimo e o sofrimento se sente no coração e nos ossos.

Chega finalmente o dia de voltar para casa, de aprender a viver de outra forma, de inverter papéis. Onde a mãe já não é infalível, e a filha já não pode ser dependente. Onde se enfrentam situações para as quais ninguém nos preparou, para barreiras, desespero, fraldas, esvaziamentos de bexiga e treinos intestinais. Para escaras, sondas, gemidos de dor 24h por dia. O cérebro humano e a capacidade de amar ultrapassam limites que nem sabíamos que existiam, a força para agir, quando sabemos que somos a única pessoa com capacidade física para agir. Tudo o resto bloqueia.. a dor, as questões, a falta de informação sobre a doença. Bloqueia. Interessa agir, resolver problemas, não mostrar pesar. É um processo obrigatório. Ver a pessoa que idolatramos perder a postura e a dignidade, presenciar as consequências da lesão física e a falta de capacidade psicológica de a aceitar. Assistir à perda de controlo dos esfíncteres em sítios públicos, ver o pânico e a vergonha na cara da mulher que já não é inteira.. e resolver, de forma automática e mecânica.

Contra todas as probabilidades e com um esforço sobre-humano característico da minha mãe, a sensibilidade dos membros foi voltando, o controlo dos esfíncteres também. Todos os dias dou graças por isso.

Quando passa a tempestade, o cérebro desbloqueia. Durante seis anos eu assisti, participei, agi. Sem falar.

Seis anos depois, o trauma rebenta em forma de ansiedade. É diagnosticado um distúrbio de ansiedade crónica aos 17 anos, 1 ano de prisão física e emocional. Ninguém sabe o que é ou de onde vem. Chegam e vão terapeutas, psiquiatras e neurologistas. A dor não passa, o medo e o bloqueio involuntário do corpo. Os ajustes de terapia e de medicação infindáveis.

É verdade, não acontece só aos outros. Tudo tem que ver com amor, abertura, informação e nomenclatura. Não ter medo de falar, de chamar as coisas pelos nomes, de partilhar a dor.

Oito anos depois, a minha mãe é uma mulher inteira, tanto quanto pode e de que tanto me orgulho. Eu tento todos os dias aprender a lidar cada vez melhor com a minha condição, desta vez consciente de que não, não acontece só aos outros.

Por Margarida Filipe Silva

Partilhe este testemunho:
ÚLTIMAS NOTÍCIAS
Já conhece os nossos projetos? Descubra-os nas Áreas de Atuação:
ENVOLVA-SE
Faça parte desta causa!

O seu apoio é muito importante. Fazer a diferença na vida das pessoas com deficiência motora está ao seu alcance.

Conheça as diferentes formas de apoiar o trabalho da Associação Salvador e junte-se a nós na ambição de tornar Portugal mais inclusivo e acessível.

Um pequeno gesto que contribui para a inclusão!

Siga-nos e acompanhe as últimas novidades
LinkedIn
YouTube
Instagram